Solo de Luz
Fábio Mullik
Eu nasci no dia do Sol, na cidade do Rio de Janeiro, e me criei sob os auspícios da terra da Bahia de São Salvador. Converso com o vento, falo a língua dos pássaros; recebo mensagem das pedras, aprendo com as lesmas e me deito sobre o colo generoso de meus ancestrais.
O Retorno (Fu) sob o estrondo do Trovão (Chên)
Ao retornar dos infernos a alma sempre traz em seu bojo as forças de cura que encontrou por lá. É como se na recusa de enfrentar as próprias sombras, e, no estrebuchar que responde ao encontro com as mesmas, algo de nobre e não alheio a nós fosse acessado. Tudo isso leva um tempo e um tempo pode significar um segundo ou uma era para quem vive e sente. As palavras aqui não são conclusões após o fechamento de um ciclo, mas realizações em processo. Eu escuto o estampido nos céus de mim e em seguida um zumbido no ouvido me chacoalha a pele, toda carne e espírito.
Deus é o estrondoso trovão.
Por que me demoro a perceber que é Ele quem está chegando?
Por que me agito e me esperneio com o olhar desassossegado voltado para fora?
A Voz me disse: - Volta-te para dentro!
E eu ainda me demoro a olhar as cenas que se interpõem umas as outras do lado de fora. Atônito, penso que o som que estremece vem de fora.
O som que estremece vem sempre de dentro!
Agarro-me às luzes fugazes advindas dos elogios e opiniões alheias na esperança de forjar uma luz identitária que se assemelhe àquela verdadeira que mal reconheço em mim. Sofro porque sei que nenhum metal forjado sob o fogo dos elogios externos poderá me dar a real noção do valor que me cabe e que me anuncia. Como dependo de elogios e da validação de vozes alheias recolhidas aqui dentro.
Outro dia A Voz me perguntou:
- Quem você é?
- Eu lhe respondi: Sou filho de Deus!
- A Voz replicou: E um filho de Deus o que é?
- Eu lhe respondi: Deus-Filho É!
A minha resposta vem do reconhecimento pessoal de uma verdade que pulsa e lateja em muitos instantes de minha vida, mas que acabo quase sempre perdendo em meio aos ruídos das vozes que ainda insisto em ouvir e que me afastam de mim mesmo.
O estrondoso trovão é Deus chegando e me pedindo para arrumar a casa.
O Oráculo revela que estou diante de forças naturais poderosas que promovem o crescimento de tudo. Em meu íntimo eu sei que sim, mas como é custoso trazer tal insight ao consciente.
O temor diante das repetidas comoções, a reverência diante das forças superiores, constituem uma grande oportunidade para o homem corrigir seu modo de vida. Examinar o próprio coração é o caminho para se adequar à vontade celeste e encontrar a harmonia com a vida na terra.
Quando um homem chega, em seu interior, à compreensão do que significa o temor e o tremor, ele está a salvo de qualquer medo provocado por condições externas. Mesmo quando o trovão eclode, espalhando terror num raio de cem milhas, ele permanece tranquilo e reverente em espírito, não interrompendo o rito do sacrifício. Este é o espírito que deve animar os líderes e dirigentes da humanidade — uma profunda seriedade interior imune a todos os terrores vindos do
exterior.
Conselho:
O homem nobre medita para retificar sua vida
Quero ouvir o silêncio na palavra
yadā te moha-kalilaṁ
buddhir vyatitariṣyati
tadā gantāsi nirvedaṁ
śrotavyasya śrutasya ca
"Quando tua inteligência superar a densa floresta da ilusão,você se tornará indiferente a tudo o que foi ouvido e a tudo o que se há de ouvir". (Bhagavad Gita 2.52)
"Eu experimentei Divindade - não palavras humanas sobre Deus". - Karl Rahner
As palavras envelhecem, adoecem, morrem e renascem em sentidos. Ando enfastiado das palavras e de seus sentidos.
Há muito as palavras me incomodam e algo dentro de mim grita por libertação. Preciso pôr as palavras pra fora. Preciso vomitá-las e regurgitá-las sem fim até que eu esteja limpo.
Debato-me incansavelmente entre a necessidade de me livrar das palavras e o ímpeto de buscar palavras que expressem o que quero dizer antes mesmo que eu saiba.
Palavras encapsulam energias. Palavras espelham sentidos denotativos ou conotativos, quaisquer que sejam as inferências, mas somente encapsulam e espelham energias. Toda e qualquer energia brilha nas palavras por um tempo infinitamente minúsculo e se esvai e retorna como numa dança de vaga-lumes.
Palavra é energia. Energia é palavra.
Há um estado anterior/ulterior à ordinária palavra. Um som não audível e seminal que se revela no milésimo segundo de suspensão da palavra.
Rogo por um instante sequer de suspensão da palavra.
A suspensão da palavra não é em absoluto uma negação da palavra! Não poderia ser. Não faz qualquer sentido dentro da transcendência de sentido que eu procuro. A suspensão da palavra não se dá pelo simples jogo de negação ou afirmação; não se subordina ao escrutínio da razão.
"Quero aceder a essa outra língua que não é falável, essa língua cega em que todas as coisas podem ter todos os nomes".[1]
A palavra aprisiona
A palavra gera equívocos
A palavra liberta
O som silencioso que habita a palavra liberta!
Há uma fresta na palavra. Algo que nos empurra e nos joga vertiginosamente num não-lugar ou num outro lugar para além das concretudes impostas por significado e significante.
Dança, Música e Poesia nos auxiliam a encontrar a fresta da palavra. Dança, Música e Poesia triunfam onde a reta palavra fracassa.
Eu me entrego ao espírito dos poetas, dançarinos e trovadores e medito naqueles que são sagrada e belamente eróticos transgressores da palavra.
Eu procuro uma fresta na palavra. Uma fresta que se abra por apenas uma fração de segundos e me revele o caos, o mundo, os céus, o infinito e o particular.
Busco o silente e romântico repouso nos braços do Deus que não é Deus e que zomba, ralha e desmerece qualquer temor ou reverência!
A palavra Deus também está cheia de ruídos. Chego a ouvir o barulho ensurdecedor de centenas de milhares de britadeiras infernais no ínfimo instante que percorre a pronuncia da palavra Deus. Mas é bem verdade que já ouvi, e, por vezes, ainda escuto o farfalhar das asas sonoras do inefável e me calo diante do mistério e comungo e amo e sou amado e me perco outra vez na simples pronúncia desta palavra-Ser.
Koan do dia: A palavra Deus é como bala soft!
1. Mia Couto em seu ensaio "Línguas Que Não Sabemos Que Sabíamos".
Bhur
Por muito tempo aprendi que a libertação me pedia um afastamento da vida. Afastamento da Terra. Afastamento das forças que vem da Terra. Inconscientemente a Terra era para mim símbolo de minha prisão, pois minha estrutura de apegos estava ligada demais às coisas da Terra; às formas; aos sentidos; aos instintos; estava por demais ligada ao medo de me entregar e aprender com a dança da dualidade.
Alcei um voo alto e belo, mas uma corda estava presa aos meus pés e me debati em meu voo e desprezei e reneguei tudo o que vi lá embaixo. Tomei o meu olhar condicionado e adoecido sobre as coisas da Terra como se fosse a própria realidade das coisas que via e com as quais me relacionava.
Sofri por ser ar sem ser terra!
Vi os meus irmãos como projeções de meus apegos e senti que o paraíso era algo fora de mim; de meu chão e sem perceber tomei a libertação como um choro tormentoso diante do inalcançável. Deus se revelava para mim apenas no espaço longínquo ou nos símbolos específicos de minha crença. Mas uma semente germinava dentro de mim e sua verdade me convidava a reintegrar a força da terra por mim esquecida. Convidava-me a reintegrar a Terra como esposa de Deus.
Após o sopro de vento forte que derruba os alicerces envelhecidos para revelar o espaço amplo a nossa volta, reencontro agora o chão, o sangue, a terra, os antepassados, as forças que me governam e começo a perceber que minha libertação depende da Terra, das florestas, dos encantados, das pedras e seixos que rolam rio abaixo; das corredeiras que me lavam, me limpam e me revigoram por dentro e por fora. Reconheço o poder do instinto e da irmandade oculta que me auxilia no processo de ser tudo para assim ser liberto e ser amante de Deus.
Aceito por fim que não posso me libertar sozinho, mas que posso me libertar com tudo e com todos na medida em que sinto a Terra como mãe dadivosa que me desata os nós de dentro e de fora e que me ensina de uma vez por todas a ser vida.